Além do Hábito: Compreendendo os Transtornos por Uso de Substâncias e as Dependências Comportamentais
- JOi Vitou
- há 3 dias
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O que faz com que uma pessoa perca o controle sobre o consumo de uma substância ou a prática de um comportamento, mesmo diante de consequências negativas evidentes? Esta é a questão central quando abordamos os transtornos por uso de substâncias (TUS) e as dependências comportamentais, temas complexos e multifacetados que afetam milhões de vidas. Longe de serem meras "falhas de caráter", estas são condições de saúde sérias que demandam compreensão, empatia e intervenção profissional.
A Neurobiologia da Dependência: Uma Doença Cerebral
Por muito tempo, o vício foi visto sob uma ótica moralista. No entanto, a neurociência moderna desmistificou essa visão, revelando que a dependência é, em sua essência, uma doença cerebral crônica e recidivante. Pesquisas como as de Nora Volkow, diretora do National Institute on Drug Abuse (NIDA) nos EUA, têm sido fundamentais para demonstrar as alterações que as substâncias e comportamentos aditivos provocam no cérebro.
Volkow e seus colaboradores (2016) explicam que as drogas e certos comportamentos ativam o sistema de recompensa do cérebro, liberando dopamina e gerando sensações intensas de prazer. Com o uso repetido, o cérebro se adapta, e a sensibilidade a essa dopamina diminui, levando à necessidade de doses maiores para obter o mesmo efeito (tolerância). Além disso, ocorre uma desregulação nos circuitos cerebrais responsáveis pelo autocontrole, tomada de decisão e regulação emocional, tornando extremamente difícil para o indivíduo resistir aos impulsos aditivos.
Das Substâncias aos Comportamentos: O Espectro da Dependência
Embora o termo "vício" seja mais frequentemente associado a drogas como álcool, nicotina, cocaína, crack e opioides, o campo da psicologia e psiquiatria tem reconhecido cada vez mais a existência de dependências comportamentais. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), uma das principais referências na área da saúde mental, incluiu oficialmente o Transtorno do Jogo (APA, 2013) como a primeira dependência comportamental, abrindo caminho para o reconhecimento de outras, como o uso problemático da internet, dependência de compras, sexo ou exercício físico.
Griffiths (2005), um pesquisador proeminente na área de dependências comportamentais, sugere que estas compartilham muitas características com os transtornos por uso de substâncias, incluindo:
Proeminência: o comportamento se torna a atividade mais importante na vida do indivíduo;
Alteração do humor: o comportamento serve para alterar estados emocionais;
Tolerância: necessidade de aumentar a frequência ou intensidade do comportamento para obter o mesmo efeito;
Sintomas de abstinência: desconforto físico e/ou psicológico quando o comportamento é interrompido;
Conflito: problemas nos relacionamentos, trabalho/estudo e outras áreas da vida devido ao comportamento;
Recaída: tendência a retornar ao comportamento após um período de abstinência.
O Desafio da Recuperação: Por que é tão difícil?
A recuperação de uma dependência é um processo complexo e frequentemente doloroso. Diversos fatores contribuem para a sua dificuldade:
Gatilhos Ambientais e Emocionais: Situações, lugares, pessoas ou estados emocionais podem funcionar como "gatilhos", despertando a fissura e o desejo incontrolável de usar a substância ou engajar no comportamento aditivo.
Comorbidades Psiquiátricas: É comum que a dependência coexista com outros transtornos mentais, como depressão, ansiedade, transtorno bipolar ou transtornos de personalidade. A dependência muitas vezes funciona como uma forma de "automedicação", tornando o tratamento integrado essencial.
Estigma Social: O preconceito em torno da dependência faz com que muitos hesitem em buscar ajuda, isolando-se e perpetuando o ciclo da doença.
Alterações Cerebrais Persistentes: Mesmo após a abstinência, as alterações cerebrais podem levar tempo para se reverter, e o desejo pode persistir por longos períodos.
O Caminho da Recuperação: Melhores Tratamentos e Terapias
A boa notícia é que a dependência é tratável, e a recuperação é possível. O tratamento eficaz é geralmente multimodal, combinando diferentes abordagens para atender às necessidades individuais do paciente. Não existe uma "cura mágica", mas sim um processo contínuo de autoconhecimento, aprendizado e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento.
As abordagens com maior evidência científica para o tratamento de transtornos por uso de substâncias e dependências comportamentais incluem:
Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC): Esta é uma das abordagens mais eficazes. A TCC ajuda o paciente a identificar e modificar padrões de pensamento e comportamento disfuncionais que contribuem para a dependência. Enfatiza o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento, como técnicas de prevenção de recaída, manejo de gatilhos, resolução de problemas e regulação emocional (Beck et al., 1993).
Terapia Comportamental Dialética (DBT): Desenvolvida por Marsha Linehan, a DBT é particularmente útil para pacientes com dificuldades de regulação emocional e impulsividade, características frequentemente presentes em dependências. Ela foca no desenvolvimento de habilidades em mindfulness, tolerância ao sofrimento, regulação emocional e efetividade interpessoal (Linehan, 1993).
Entrevista Motivacional (EM): Esta abordagem, desenvolvida por Miller e Rollnick (2013), é focada em ajudar o paciente a explorar e resolver a ambivalência sobre a mudança. O terapeuta atua como um facilitador, auxiliando o paciente a encontrar sua própria motivação interna para a recuperação.
Manejo de Contingências: Baseia-se no princípio do reforço positivo, oferecendo incentivos tangíveis (como vouchers ou privilégios) para comportamentos desejáveis, como a abstinência comprovada por testes de urina negativos.
Terapia Familiar: Como a dependência afeta todo o sistema familiar, envolver os membros da família no processo terapêutico pode ser crucial. A terapia familiar ajuda a melhorar a comunicação, estabelecer limites saudáveis e desenvolver um ambiente de apoio à recuperação.
Grupos de Apoio: Organizações como Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), baseadas no modelo dos 12 Passos, oferecem um ambiente de suporte entre pares, encorajamento e a partilha de experiências, que são componentes valiosos da recuperação. Embora não sejam terapias psicológicas no sentido formal, complementam o tratamento profissional de forma significativa.
Tratamento Medicamentoso (quando indicado): Para certos transtornos por uso de substâncias, medicamentos podem ser utilizados para reduzir a fissura, gerenciar sintomas de abstinência ou tratar comorbidades psiquiátricas. Isso deve ser sempre avaliado por um médico psiquiatra.
Conclusão
Os transtornos por uso de substâncias e as dependências comportamentais são condições complexas, mas que podem ser efetivamente tratadas. A recuperação é uma jornada contínua, que exige comprometimento, suporte e, acima de tudo, um tratamento profissional e humanizado. Se você ou alguém que você conhece está lutando contra uma dependência, saiba que buscar ajuda é o primeiro e mais corajoso passo em direção a uma vida de mais liberdade e bem-estar.
Referências Bibliográficas
American Psychiatric Association (APA). (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.
Beck, A. T., Wright, F. D., Newman, C. F., & Liese, B. S. (1993). Cognitive therapy of substance abuse. Guilford Press.
Griffiths, M. D. (2005). A ‘components’ model of addiction within a biopsychosocial framework. Journal of Substance Use, 10(4), 191-197.
Linehan, M. M. (1993). Cognitive-behavioral treatment of borderline personality disorder. Guilford Press.
Miller, W. R., & Rollnick, S. (2013). Motivational Interviewing: Helping People Change (3rd ed.). Guilford Press.
Volkow, N. D., Koob, G. F., & McLellan, A. T. (2016). Neurobiologic Advances from the Brain Disease Model of Addiction. New England Journal of Medicine, 374(4), 363-371.
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