O que é o casamento? Um convite à construção de vínculos duradouros e conscientes
- JOi Vitou
- 3 de jun.
- 4 min de leitura
O significado do casamento na contemporaneidade
Casar-se é, antes de tudo, um ato de escolha, mas também uma experiência profundamente enraizada em aspectos culturais, históricos, psicológicos e existenciais. Ao longo da história, o casamento se configurou como um arranjo social destinado a regular a sexualidade, estabelecer alianças políticas, garantir a herança de bens e promover a segurança econômica. Esse modelo, fortemente funcionalista, sobreviveu por séculos como a principal matriz para organização das sociedades.
Na modernidade, no entanto, o casamento passou por transformações profundas. Como destaca Anthony Giddens (1992), na obra “The Transformation of Intimacy”, vivemos a ascensão do que ele chamou de relacionamento puro — uma união baseada não mais em obrigações ou funções sociais, mas no desejo mútuo de conexão emocional, sexual e existencial. Neste modelo, o amor romântico torna-se o principal cimento da união, e a satisfação pessoal passa a ser um critério central para a sua manutenção.
Assim, casar-se hoje é menos um rito de passagem obrigatório e mais uma escolha subjetiva, profundamente conectada ao desejo de construir uma trajetória compartilhada. Esta trajetória é marcada por afetos, desafios, negociações e, sobretudo, pela consciência de que a relação precisa ser constantemente cuidada e revisitada.
John Gottman (1999), referência mundial na pesquisa sobre casamentos duradouros, define a relação conjugal como uma “dança relacional”, na qual o casal precisa aprender a sincronizar passos, escutar o ritmo do outro, respeitar diferenças e adaptar-se às mudanças que surgem ao longo da vida. Nesse sentido, o casamento não é uma estrutura fixa, mas um processo dinâmico de construção conjunta.
O deslocamento das funções tradicionais
Historicamente, o casamento esteve atrelado a funções que extrapolavam a dimensão afetiva. Na Grécia Antiga, por exemplo, o casamento era essencialmente uma instituição patrimonial e reprodutiva, regulada pelo Estado para garantir a sucessão familiar. No medievo cristão, o casamento ganhou caráter sacramental, estabelecendo-se como um vínculo indissolúvel e destinado à procriação sob o aval divino.
Com o advento do Iluminismo e as transformações sociais trazidas pela modernidade, especialmente após a Revolução Industrial, as funções tradicionais do casamento começaram a ser tensionadas. O surgimento do ideal romântico no século XIX, influenciado por obras literárias como as de Goethe e Victor Hugo, introduziu a ideia de que o casamento deveria ser motivado pelo amor, e não apenas pela conveniência social ou econômica (Coontz, 2005).
Hoje, embora o casamento ainda cumpra algumas funções práticas — como a estabilidade econômica ou a co-parentalidade — ele é principalmente percebido como um espaço de parceria, intimidade e realização pessoal. Eli Finkel (2014) cunhou a expressão “o casamento do eu” para descrever essa nova configuração: uma instituição cada vez mais orientada para a realização individual e para o autodesenvolvimento dos parceiros.
O paradoxo contemporâneo: mais expectativas, mais fragilidade
Esse movimento, embora emancipe os sujeitos da rigidez dos papéis tradicionais, também cria novos desafios. Finkel (2014) argumenta que, na medida em que os indivíduos buscam no casamento a satisfação de necessidades superiores — como o crescimento pessoal, o apoio emocional irrestrito, a validação da identidade e a realização sexual plena — a relação se torna mais exigente e, paradoxalmente, mais vulnerável.
Ao contrário das gerações anteriores, para quem “manter o casamento” era um valor por si só, muitos casais contemporâneos estão dispostos a romper a relação quando percebem que ela não contribui mais para o seu bem-estar ou para seus projetos individuais. Como apontam Amato e Hohmann-Marriott (2007), essa mudança de valores explica, em parte, os altos índices de divórcio nas sociedades ocidentais.
Nesse contexto, o casamento se torna uma espécie de “projeto biográfico” (Beck & Beck-Gernsheim, 1995), que precisa ser constantemente atualizado, negociado e legitimado pelo casal, e não apenas pela sociedade ou pela família.
A exigência de habilidades emocionais
Esse novo paradigma conjugal impõe a necessidade de um repertório emocional e comunicacional mais sofisticado. Como mostram os estudos de Gottman e Silver (1999), casais bem-sucedidos não são aqueles que evitam conflitos, mas sim aqueles que desenvolvem habilidades para gerenciar as inevitáveis diferenças, mantendo um padrão de interação pautado na empatia, na validação emocional e na construção de significados compartilhados.
A escuta ativa, o reconhecimento das necessidades do outro, a capacidade de negociar expectativas e limites, bem como a disposição para crescer junto, tornam-se competências indispensáveis na manutenção de vínculos duradouros.
Em outras palavras, o casamento contemporâneo não se sustenta apenas no amor espontâneo, mas requer um investimento contínuo em práticas relacionais intencionais.
Casamento, diversidade e pluralidade
É importante sublinhar que o conceito de casamento também se diversificou profundamente nas últimas décadas. As lutas pelos direitos civis das populações LGBTQIAP+ ampliaram o reconhecimento social e jurídico de modelos conjugais antes marginalizados. Estudos como o de Patterson (2000) demonstram que casais homoafetivos estabelecem vínculos tão estáveis e satisfatórios quanto os heterossexuais, desafiando concepções essencialistas sobre o casamento e a família.
Além disso, formas alternativas de conjugalidade — como uniões livres, consensuais ou poliamorosas — também emergem como expressões legítimas de vínculos afetivos e sexuais na contemporaneidade, apontando para a crescente pluralização dos modos de viver a intimidade.
O convite à construção consciente
Diante deste panorama, podemos afirmar que casar-se, na contemporaneidade, é um convite à construção consciente de um projeto relacional. Mais do que reproduzir modelos herdados, trata-se de refletir sobre os valores, expectativas e objetivos que cada parceiro deseja cultivar na relação.
Como destaca Alain de Botton (2016), “o amor não é algo que simplesmente acontece; é uma habilidade que precisa ser desenvolvida, assim como qualquer outra”. O casamento, portanto, é menos um destino e mais uma prática contínua de construção e reconstrução, onde a disponibilidade para o diálogo, a empatia e a negociação são elementos centrais.
Por isso, ao pensarmos sobre o que é casar-se hoje, não se trata apenas de uma escolha afetiva ou legal, mas de um compromisso ético e relacional com o outro e consigo mesmo: o compromisso de crescer, cuidar e transformar-se em conjunto.
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