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A Construção da Intimidade no Ambiente Digital

  • Foto do escritor: JOi Vitou
    JOi Vitou
  • 6 de jun.
  • 6 min de leitura

Na vida real, a percepção de um “môzin-dengo-lovinho” envolve uma variedade de sinais sensoriais simultâneos. Ao buscarmos por alguém, observamos a linguagem corporal, o tom de voz, o senso de humor em tempo real, as interações sociais com outras pessoas e captamos nuances contextuais sobre seus valores e estilo de vida - como se veste para um determinado evento, como trata um garçom, entre outros.


Essa experiência permite uma avaliação mais completa e intuitiva da pessoa (Eastwick & Finkel, 2014). A atração inicial pode ser motivada por diversos fatores, incluindo proximidade física, interesses compartilhados evidentes em um determinado contexto (como um hobby ou um evento social) e a dinâmica da interação em si.


Nos aplicativos de relacionamento, essa percepção é mediada por perfis construídos. A primeira impressão é influenciada por fotos selecionadas e descrições textuais concisas (Tinder, 2023). Essa apresentação curada permite que os usuários controlem a imagem que projetam, o que pode levar a discrepâncias entre o perfil online e a realidade (Hancock & Toma, 2011).


A decisão inicial de “curtir” ou descartar um perfil é frequentemente baseada em atributos visuais superficiais, criando uma “cultura do deslize”, onde a avaliação pode ser rápida e superficial (Ranzini & Lutz, 2017). A ausência de sinais não verbais e contextuais imediatos limita a capacidade de formar uma impressão completa e pode levar a idealizações ou expectativas irrealistas baseadas em informações limitadas e filtradas.


Diversos comportamentos contribuem para essa diferença perceptual:


Apresentação seletiva: Nos aplicativos, os usuários podem apresentar uma versão idealizada de si mesmos, destacando os melhores ângulos, hobbies mais interessantes e omitindo aspectos menos desejáveis (Ellison et al., 2007). Isso pode gerar primeiras impressões mais positivas online do que se a interação ocorresse organicamente.


Foco na aparência: A interface dos aplicativos frequentemente prioriza fotos, incentivando julgamentos rápidos baseados na atratividade física percebida (Luo & Zhang, 2009). Isso pode diminuir a importância de outros fatores cruciais na compatibilidade a longo prazo, como valores, personalidade e interesses.


Comunicação filtrada: A comunicação online permite tempo para pensar e editar respostas, o que pode levar a interações mais controladas e menos espontâneas do que conversas face a face. A ausência de tom de voz e linguagem corporal pode dificultar a interpretação precisa das intenções e emoções.


Maior percepção de opções: A vasta quantidade de perfis disponíveis nos aplicativos pode criar uma mentalidade de “mercado de relacionamentos”, onde os usuários sentem que sempre há uma “opção melhor” a um deslize de distância (Bauman, 2003). Isso pode levar a uma menor valorização dos indivíduos e a uma maior disposição para descartar conexões rapidamente.


A percepção de facilidade de acesso impacta a forma como os indivíduos investem tempo e esforço em cada conexão.


A alteração perceptiva é os comportamentos facilitados pelos aplicativos podem contribuir para uma diminuição da responsabilidade afetiva. A retirada de responsabilidade ocorre quando os indivíduos se sentem menos obrigados a considerar os sentimentos e o bem-estar dos outros devido à natureza impessoal e potencialmente descartável das interações online.

Nos tornamos potencialmente mais irresponsáveis com pessoas que encontramos pelas redes por diversos motivos:


Despersonalização: A mediação da tela pode levar à desumanização do outro, tornando mais fácil ignorar seus sentimentos ou ser evasivo. A ausência de contato visual e de presença física imediata pode diminuir a empatia.


Paradoxo da escolha: A abundância de opções pode levar a um menor investimento emocional. A sensação de que sempre há outra pessoa disponível pode diminuir o compromisso e a disposição para resolver conflitos ou investir na construção de um relacionamento (Schwartz, 2004).


Facilidade de término: Terminar um relacionamento online pode parecer mais fácil e menos confrontador do que na vida real, levando a comportamentos como o ghosting (desaparecer sem explicação). A falta de consequências sociais imediatas pode encorajar essa forma de evitação.


Foco na autoapresentação: A ênfase na construção e manutenção de um perfil atraente pode levar a um foco maior nas próprias necessidades e desejos do que na consideração do outro.


Estudos recentes têm explorado a relação entre o uso de aplicativos e a responsabilidade afetiva. Pesquisas indicam que a comunicação mediada por tecnologia pode, em alguns casos, levar a uma menor empatia e consideração pelos sentimentos dos outros (Konrath et al., 2011). A cultura do descarte e a percepção de abundância de opções também foram associadas a comportamentos menos comprometidos e a uma maior probabilidade de terminar relacionamentos de forma abrupta ou evasiva (Ward, 2016).


Alguns pesquisadores argumentam que a arquitetura dos próprios aplicativos, com seus sistemas de match rápido e foco em perfis individuais, pode inadvertidamente incentivar uma abordagem mais transacional e menos relacional na busca por parceiros (Birnholtz et al., 2018).


Quebra de Expectativas


A quebra de expectativas, por sua vez, emerge da lacuna entre a apresentação idealizada online e a realidade da interação presencial. Quando a “persona” cuidadosamente curada (Hancock & Toma, 2011) não corresponde à pessoa real, frustrações são inevitáveis. Essa dissonância, somada à despersonalização facilitada pela tela (Konrath et al., 2011), contribui para a diminuição da responsabilidade afetiva, tornando comportamentos como o ghosting mais comuns e menos condenáveis socialmente (Ward, 2016).


Como Podemos Melhorar: Navegando as Complexidades e Cultivando Conexões Autênticas


Para enfrentar os desafios dos relacionamentos mediados por aplicativos e cultivar conexões mais significativas e empáticas, é essencial adotar uma abordagem consciente e intencional. As melhorias podem ocorrer em múltiplos níveis:


Consciência e Autoconhecimento:


Reconhecer a “persona” digital


Precisamos entender que a versão que projetamos, e consumimos, nos aplicativos é uma construção. O trabalho de Erving Goffman (2018), A apresentação do eu na vida cotidiana, nos lembra que todos somos performers sociais. No ambiente digital, essa performance é amplificada e submetida a intensa curadoria.


Valorizar a autenticidade sobre a idealização


A psicóloga Brené Brown (2013) destaca a importância da vulnerabilidade e da imperfeição como caminhos para uma conexão real. Incorporar essa visão às interações online nos ajuda a ser menos “editados” e mais humanos, reduzindo a discrepância entre o eu virtual e o eu real.


Mudança de Comportamento:


Desacelerar o “deslize”


A “cultura do deslize” (Ranzini & Lutz, 2017) prioriza a aparência e incentiva decisões rápidas. Reduzir essa impulsividade e analisar com mais atenção os interesses e valores descritos nos perfis pode aumentar a chance de conexões mais profundas.


Priorizar a transição para o offline


A experiência multifacetada da vida real (Eastwick & Finkel, 2014) oferece insumos insubstituíveis para uma avaliação relacional mais autêntica. Mover o diálogo para o presencial, quando possível, favorece vínculos mais consistentes.


Praticar a responsabilidade afetiva


Comunicação clara, respeito mútuo e consideração pelos sentimentos do outro são fundamentais. Evitar o ghosting e o descarte repentino implica reconhecer que há uma pessoa do outro lado da tela, com expectativas e emoções legítimas.


Desenvolvimento dos Aplicativos: Arquitetura e Design:


Incentivar perfis mais completos e autênticos


Aplicativos poderiam promover espaços que vão além da aparência e incentivem os usuários a compartilharem valores, pontos de vista e traços de personalidade.


Reduzir a percepção de abundância infinita


O “paradoxo da escolha” (Schwartz, 2004) pode ser minimizado com mudanças na interface, como limitar o número de perfis mostrados por dia ou priorizar compatibilidades qualitativas.


Criar ferramentas para promover empatia e conexão


Recursos que estimulem conversas mais profundas antes do match ou que promovam escuta ativa podem ser aliados na humanização das interações digitais.


Considerações:


Ao compreendermos que os aplicativos são ferramentas e não substitutos para a complexidade dos vínculos humanos, podemos adotá-los com mais criticidade e responsabilidade.


Cuidar de como nos apresentamos, de como nos relacionamos e de como tratamos o outro, mesmo que mediado por uma tela, é um exercício contínuo de maturidade emocional.


A fluidez dos vínculos líquidos, como aponta Bauman (2003), não nos impede de buscar profundidade. Mesmo em tempos de swipe, ainda é possível cultivar afeto, respeito e presença - se houver intencionalidade, ética relacional e disposição para o encontro real.


Referências Bibliográficas


Bauman, Z. (2003). Liquid love: On the frailty of human bonds. Polity Press


Brown, B. (2013). A coragem de ser imperfeito: Como aceitar a própria vulnerabilidade, vencer a vergonha e ousar ser quem você é. Sextante.


David M Markowitz, Jeffrey T Hancock, Deception in Mobile Dating Conversations, Journal of Communication, Volume 68, Issue 3, June 2018, Pages 547–569, https://doi.org/10.1093/joc/jqy019


Eastwick, P. W., Luchies, L. B., Finkel, E. J., & Hunt, L. L. (2014). The predictive validity of ideal partner preferences: A review and meta-analysis. Psychological Bulletin, 140(3), 623–665. https://doi.org/10.1037/a0032432


Ellison, N. B., Hancock, J. T., & Toma, C. L. (2011). Profile as promise: A framework for conceptualizing veracity in online dating self-presentations. New Media & Society, 14(1), 45-62. https://doi.org/10.1177/1461444811410395


J. T. Hancock, C. Toma, and N. Ellison. 2007. The truth about lying in online dating profiles. Association for Computing Machinery, New York, NY, USA, 449–452.


Konrath, S., O'Brien, E. H., & Hsing, C. (2011). Changes in dispositional empathy in American college students over time: A meta-analysis. Personality and Social Psychology Review, 15(2), 180-198


Luo, S., & Zhang, G. (2009). What leads to romantic attraction: similarity, reciprocity, security, or beauty? Evidence from a speed-dating study. Journal of personality, 77(4), 933–964. https://doi.org/10.1111/j.1467-6494.2009.00570.x


Schwartz, B. (2004). The paradox of choice: Why more is less. Ecco


Suler, J. R. (2004). The online disinhibition effect. CyberPsychology & Behavior, 7 (3), 321-326.


Ward, J. (2016). The swipe life: Exploring the impact of mobile dating apps on relationship initiation and development. Journal of Social and Personal Relationships, 33(8), 1051-1069.

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